Por Simone Tebet*
“Como indivíduos, passamos. Mas nossos sonhos e lutas pela humanidade ficam. O que defendemos e valorizamos permanece além de nossa existência”, diz a ministra
Ainda estou aqui. Nas telas do cinema, a coragem e a luta de uma mulher e mãe de família à procura do marido, o deputado federal Rubens Paiva, sequestrado, torturado, morto e lançado ao mar, no período do regime militar. Um belíssimo filme de uma história real que não queremos ver de novo. Não o filme, a história.
Ainda estão aqui. Nas telas da TV, as cenas de um policial militar que se autojulga juiz e carrasco, e lança, do alto de uma ponte, o corpo de um jovem que havia atravessado, naquele mesmo dia, outras ruas e outras pontes, no seu serviço de entrega de mercadorias porta a porta.
Numa outra cena real, ambientada numa estação de metrô, um segurança comprime o joelho sobre o pescoço de um jovem desarmado e de mãos para trás. Numa cena patética posterior, ele tenta reanimar o corpo que acabara de matar, por asfixia.
Como numa série de vários episódios, outro policial, em trajes civis, desfere 11 tiros, pelas costas, no adolescente que furtou quatro pacotes de sabão em pó de um supermercado.
Ainda estamos aqui, para dizer da necessidade de uma profunda reflexão sobre os caminhos tomados pela humanidade. Em que curva da história ela se perdeu. Em que ponto da caminhada ela tomou o caminho inverso ao do processo civilizatório.
Ao defender sua família, e a memória do seu marido, contra as arbitrariedades e as mentiras de um regime infame, que tripudiava sobre a liberdade, a justiça e os direitos humanos, Eunice Paiva nos legou um exemplo e nos ensinou o caminho.
Um dia, não estaremos mais aqui. Mas a nossa história permanecerá viva. Precisamos saber se ela será contada como a daqueles que presenciaram, de corpo presente, aquelas cenas de horror e morte, e nada fizeram. Seguiram seus destinos, pé ante pé, como se nada tivessem visto, como se nada tivesse acontecido. Também permaneceremos inertes, frente aos que cultivam a violência, que promovem a troca dos livros pelas armas, o amor pelo ódio, a união pela discórdia, a esperança pelo desespero, a luz pelas trevas?
Como indivíduos, todos passaremos. Mas não passará o sonho que defendemos, não passarão as lutas que travamos em defesa daquilo que temos de mais valioso: a nossa humanidade.
Retomo um pensamento milenar: somos humanos, nada do que é humano nos deve ser indiferente, tudo que é humano nos pertence. As dores humanas pertencem a todos nós, os direitos humanos pertencem a todos nós, as vitórias e as derrotas humanas nos marcam e nos comprometem.
Mais que tudo: a infinita e invencível esperança humana nos define, e dela daremos testemunho. Ao fazê-lo, continuaremos vivos na memória e na luta dos que virão depois de nós, como Eunice Paiva vive hoje em nossa memória e em nossas lutas.
Contra o terror e a barbárie, estamos aqui.
Pela dignidade e pelo direito à felicidade, permaneceremos aqui.
Pelos direitos humanos de todos os humanos, não recuaremos.
Brasília (DF), 10 de Dezembro de 2024, Dia Internacional dos Direitos Humanos
*Ministra do Planejamento e Orçamento
(artigo originalmente publicado no site Brasil247)